Thursday, December 25, 2014

SUAVE MILAGRE*


Xavier jogava ao bingo a feijões, a níqueis ter-se-ia arruinado naquela tarde fria e enfarruscada, a cabeça dele andava longe dali, Xavier anima-te, anima-te Xavier, má sorte ao jogo, mais dia menos dia, a Carmen aparece-te por cá. Conversa fiada que não lhe tirava aquele peso de cima, mais pesado que qualquer outro que alguma vez lhe havia passado pelas costas. Pelas contas dele, Carmen deveria ter aparecido já há três dias. Dera notícias há uma semana, depois tinham-se calado os contactos. Desde então passava as noites em claro, contraía-se-lhe o peito, doía-lhe o corpo todo, alagava-se em suores, escorriam-se-lhe os olhos, Xavier deves andar a chocar uma valente gripe, é o que é, devias comer uns bifes a sério e beber uns copos valentes. Mas não lhe apetecia comer nem beber, ia trabalhar como um autómato, porque tinha de ir, tinha os seus clientes, não podia perder-lhes a confiança ganha ao longo de quase oito anos. No dia anterior tinha escorregado e rebolado de um telhado, por sorte baixo, para uma cama de folhas ajuntada pelo outono. Mais dor menos dor, as dores da queda não o distraíram do tormento maior.

Cerca das nove da noite, aproximou-se do grupo um tipo desconhecido, mas latino-americano das pontas dos cabelos às unhas dos pés, que perguntou com voz pesada: Está por aqui Xavier Gonzalez Sagunto? Todos se calaram, Xavier levantou-se a caminho do desconhecido, Sou eu, Sagunto sou eu.Vem daí, disse o outro, encaminhando-se para a saída do local. Depois sussurrou-lhe: Segue-me, mas não te aproximes. Vamos ter de andar por aí um bocado de tempo, assim.

Xavier seguia o outro saltitando-lhe as ideias, agora ainda mais perturbadas pela estranha frieza do hispânico, entre a esperança de encontrar Carmen e o desespero de a ter perdido em tantos maus encontros que as noites de insónia lhe haviam inventado. Percorreram ruas que Xavier conhecia de olhos fechados, repetiram percursos, adivinhava-se que o estranho pretendia assegurar-se que não era seguido. Depois parou, e chamou Xavier com a mão. Como se chama a tua mulher? Carmen, Carmen Sagunto, respondeu Xavier, perturbado sentindo o coração a sair-lhe da boca. Onde está Carmen? Além,  naquela furgoneta cinzenta. Está com a minha mulher. Ela depois explica-te como tudo aconteceu. Agora temos de pagar duzentas e cinquenta notas de vinte ao rapaz que nos trouxe de lá de baixo, onde os três nos perdemos do grupo, até aqui. A mim, já não me resta nada. Carmen gastou o que lhe sobrava com algumas coisas que comemos pelo caminho. O rapaz está armado? Não, creio que não, mas não trabalha sozinho e seria mau não pagar o que prometemos.

Foram-se as economias amealhadas para se sustentarem aos dois enquanto Carmen não tivesse trabalho, mas Xavier e Carmen estavam juntos após três anos de separação. E era tanta a falta que tinham um do outro que durante dois dias seguidos ninguém viu abrir-se a porta da caravana. Reapareceram ao terceiro dia, passado pouco tempo Carmen estava grávida de um segundo filho. Xavier, especialista em tudo o  que for preciso, canalizador, electricista, pintor, estufador, carpinteiro, pedreiro, electrónica doméstica, andava de ânimo redobrado. Mas Carmen, passados três meses, começou numa choradeira sem fim. Por que choras Carmen? Não era preciso perguntar. Mais ou menos pela altura em que soube estar grávida,  o desespero que carregara consigo desde que deixara Diego, o seu pequenino Dieguito, em Chiloloquo com a avó, instalou-lhe no peito uma mola solta que lhe enchia e despejava incontroladamente as fontes lacrimais.

Xavier e Carmen nasceram em Chiloloquo, ele em 1975, ela em 1984. Casaram na Igreja de Nossa Senhora do Pilar em Março de 2001. Xavier já era pau para toda a obra em Chiloloquo mas quando ninguém tem para fazer outra coisa além de qualquer coisa que apareça, cada qual é electricista, pintor, ferreiro, canalizador, tudo o que for preciso, em sua casa, mas não passa disso, e isso só chega, quando chega, para uma sobrevivencia miserável, e dois anos depois, Xavier decidiu saltar para o outro lado da fronteira. Carmen derreteu-se em lágrimas, Xavier prometeu tê-la com ele  na primavera do ano seguinte. Não teve. Pela primeira carta que recebeu soube que Carmen tinha ficado grávida, Dieguito viria a nascer na primavera, Carmen juntou-se a Xavier três anos depois.

De tanto se debulhar em lágrimas por Dieguito, Carmen perdeu o segundo filho, em gestação, e entrou em modo de autoflagelação e degradação física durante dois anos por um sentimento de pecado que ninguém, nem Deus, lhe perdoaria. Meu Deus! Meu Deus! Eu queria tanto ver Dieguito! Entretanto, tornara-se cada vez mais difícil saltar a fronteira. Dieguito tinha já nove anos, não conhecia o pai, não se lembrava da mãe, a avó era sua mãe e pai, Chiloloquo o mundo todo debaixo do céu, mas não sossegou mais desde o dia em que soube que havia diligências em curso para o levarem para junto dos progenitores.

Aconteceu anteontem.
Durante três dias, tantos quantos passaram desde que souberam que Dieguito tinha passado a fronteira, Xavier contorceu-se, mudo e tenso, com as recordações do desencontro que o fizera desesperar há sete anos pela sorte de Carmen.
Ontem, andaram por aí os três para repararem algumas fugas no sistema de aquecimento de uma casa.
Não completaram o trabalho, por falta de tempo. Voltam amanhã. Hoje é dia de celebrarem o renascimento do seu Dieguito.
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* "Suave Milagre", Eça de Queiroz

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