Sunday, March 02, 2014

ISAÍAS E SAMUEL


Caro E.,

Voltas ao teu tema preferido: a necessidade de corte das gorduras do Estado. E, a este propósito, recordo-me da história dos "Ratos reunidos em conselho". Até agora, não apareceu o rato capaz de colocar o guizo no pescoço do gato. Talvez por falta de força para chegarem às gorduras, até agora têm-nos cortado a pele.

Depois, caro E., sem te contestar as conclusões, permite que repita a minha discordância de algumas contas. E também, a propósito de contas, me ocorre uma laracha antiga:

Há muito tempo que Isaías, o patrão, se esquecera de rever o salário de Samuel. Decidiu-se então Samuel a falar com Isaías para lhe lembrar quanto o seu salário estava corroido pela inflação e não lhe permitir o cinto mais aperto. Isaías mirou Samuel por uns instantes, e depois disse-lhe, muito bem, vamos lá fazer umas contas: O ano tem 365 dias (366 de quatro em quatro anos), certo? Certo. Pois bem. Quantas horas trabalhas por dia? Oito. Ou seja o equivalente a um terço dos dias do ano, contas feitas, trabalhas 122 dias por ano. Certo?. Certo.  Mas não trabalhas ao sábado, que é dia guardado da nossa religião, e também não trabalhas ao domingo porque estão os outros fechados, ou seja  cerca de cento e quatro dias. Certo? Certo. Quem de 122 tira 104 ficam 8. Agora tira-lhe os feriados e as férias e faz as contas. Afinal, Samuel, ainda me deves dinheiro.

A anedota tem barbas e o ludíbrio das contas é mais que evidente. E, no entanto, uma história parecida anda para aí a  ser contada e recontada e, mais espantoso que isso, engolida pela generalidade dos Samueis deste país. 

Ninguém minimamente responsável e informado pode contestar o alargamento acelerado observado nas últimas décadas do perímetro do Estado na economia. O que, só por si, poderia não ter consequências negativas no crescimento económico se as prestações da função pública tivessem sido eficientes e os investimentos públicos rentáveis. Sabemos que não foram. Aos investimentos públicos realizados nos últimos vinte anos corresponderam crescimentos anémicos e pela perda de velocidade da economia são responsáveis as ineficiências de algumas das funções nucleares do Estado, nomeadamente a justiça, e a redundância de numerosos institutos, observatórios, fundações, etc.
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Mas é sobretudo a segurança social quem geralmente paga as favas quase todas, e, muito particularmente, as prestações sociais. No Expresso deste fim-se-semana, por exemplo, lá vem mais uma bicada de um dos subdirectores do semanário, que elegeu os reformados como as "bêtes à abattre", reportando-se a um gráfico publicado num estudo editado pela Fundação Francisco Manuel dos Santos.Em 2010, segundo o tal estudo, as prestações sociais representavam 43% da despesa pública e a despesa pública 50% do PIB. Em 1986 as prestações sociais representavam 10% do PIB, 12% em 1993, 13% em 2000 e 22% em 2010

É inquestionável o crescimento das prestações sociais na primeira década do século. Mas é o peso das reformas e pensões tão acentuado quanto dizem os Isaías cá do sítio? Não é. E não é porque as contas têm sofisma que, estranhamente,quase toda a gente, mesmo a mais ilustrada, engole sem lhe dar pelo sabor a treta. Antes de avançar na desmontagem (fácil) do logro convém retirar da análise algumas opacidades que não têm qualquer correlação com a questão que abordo.
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Uma delas é o crescimento dos apoios sociais decorrentes da situação de crise, nomeadamente o subsídio de desemprego, uma questão que só a retoma da economia resolve, a menos que resolvam os Isaías acabar com ele, o subsídio. Nada disto invalida o facto de em muitos casos estarem a ser atribuidos subsídios a quem, por ter recursos próprios, a palavra "segurança social" carece de sentido. Em igualdade de absurdas circunstâncias estão as reformas pagas a não contributivos, e portanto consideradas "segurança social", que dispõem de meios próprios mais que suficientes à sua subsistência em condições condignas.
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Também carece de sentido incluir na rubrica  "segurança social" a reforma paga à senhora presidente da AR, reformada aos 42 anos (!), e a todos os políticos e ex-políticos, e a tantos mais que leis disléxicas chamam "segurança social" do mesmo modo que lhe poderiam chamar "apito".
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Dito isto, e muito mais haveria a acrescentar, vamos então às contas dos Isaías quanto aos sistemas de pensões. Mas não sem antes apontar o mais tenebroso raciocínio que leva à consideração da  tributação em CES dos complementos de reforma privados, geridos por privados, sem qualquer intervenção da função pública, responsabilidade, nem risco do Estado, como redução da despesa pública! 

Desde logo, os Isaías, metem no mesmo saco as contas do regime geral da segurança social, financiada pelas prestações sociais pagas pelo sector privado - mais de 1/3 dos salários brutos - com os sistemas dos reformados da função pública e situações afins, financiadas por impostos, e ainda as contribuições sociais a não contributivos que, naturalmente deveriam ser financiadas por impostos. A prática de tudo no mesmo saco tem servido aos vários governos para se apropriarem dos saldos positivos da segurança social dos privados, e agora clamarem os Isaías que o sistema é insustentável!
Qual sistema, caramba? O do regime geral da segurança social? Não parece. Lendo o Relatório do OE 2014, págs. 55, ( o sistema português de segurança social é que menos riscos corre nos próximos 50 anos). Tudo no mesmo saco serve ainda a outros propósitos: Como a única forma de cortar gorduras no Estado tem sido a reforma antecipada de muitos funcionários, reduzem-se as despesas de pessoal, aumentam as "despesas sociais", e os resultados da engenharia levados à conta da insustentabilidade do sistema!

Uma forma honesta de saber onde nos encontramos em matéria de sustentabilidade do sistema deveria começar pela separação das contas do regime geral da segurança social do sistema de segurança social da função pública e funções correlativas. E, feito isto, considerar que, efectivamente, as reformas pagas aos contributivos do regime geral não são despesa pública, porque não correspondem a um serviço prestado pela função pública que apenas gere as transferências entre contribuitivos activos e contributivos reformados. Apenas os custos dessa gestão, que representarão não mais que 1% do total gerido, é efectivamente despesa pública. Esta correcção da despesa pública, dir-te-á qualquer Samuel mais avisado determinará um valor substancial daquilo a que os Isaías insistem chamar despesa pública, qualquer coisa como oito pontos percentuais.

Mas há mais: Quem recebe pensões ou refomas não recebe os valores que os Isaías dizem pagar. Salvo o caso das refomas mais baixas, e se o reformado não tem outros rendimentos, todas as reformas estão sujeitas a IRS, além da confiscatória CES, que pode elevar a carga tributária para cima de 60%. É despesa o valor pago e a receita do imposto deduzido?*

Samuel que faça contas chegará à conclusão que os oito pontos percentuais atrás referidos montam a cerca de 12 pontos percentuais se uma receita não for considerada receita, como parece a qualquer Samuel atento.


2 comments:

Anonymous said...

Um bom artigo, muito esclarecedor e que desmonta a banha da cobra a que estes governantes e seguidores recorrem, para roubarem os reformados.
Os jovens são enviados para a emigração (os descontos e o que ganham ficam no país que os acolhe), os resignados e os mais velhos estão desempregados (alguns ainda vão recebendo o subsídio) e os reformados que trabalharam uma vida (no meu caso 46 anos de desconto para a segurança social) são roubados com o CES.
Enquanto isto acontece, os administradores das grandes empresas recebem através dos seguros( com métodos escuros) para fugirem aos descontos para a segurança social.
Isto é um país de bananas.........!

Unknown said...

sem dúvida muito util para muito eleitor mal esclarecido. Pena que prefiram ter fé a ter juizo.