Thursday, October 07, 2010

AFIRMA TEODORA

Chamada às responsabilidades

“Portugal não pode dar-se ao luxo de sofrer nova redução do ‘rating’ sob pena de se entregar nos braços de um FMI.”

1. BREVE ENQUADRAMENTO

Há demasiado tempo que as atenções em Portugal têm estado concentradas no teatro da política, o que tem como resultado escamotear um verdadeiro debate de alternativas, num tempo em que nenhuma política séria pode ser popular. Em épocas normais, isso levaria "apenas" ao descrédito da democracia. Na situação actual, as consequências de tais manobras de diversão são muito mais graves porque põem directamente em causa - e por muito tempo - as condições de vida de todos nós.

Importa, por isso, rejeitar a discussão fulanizada da política e dos malabarismos dos diferentes protagonistas e antes expor os motivos que os tornaram tão perigosos. Portugal aceitou durante décadas concentrar-se no crescimento a curto prazo. Essa preferência foi justificada pelo objectivo de convergência real com os países desenvolvidos da Europa, mas preocupou-se pouco em analisar os modelos institucionais e económicos que os levaram a atingir essa condição. Contentámo-nos em obter e gastar - umas vezes melhor do que outras - os recursos financeiros que os nossos parceiros e os investidores internacionais puseram à nossa disposição. Durante duas décadas, essa postura foi facilitada pela evolução política na Europa e, sobretudo, pela euforia dos mercados financeiros que julgavam ter aprendido a eliminar os riscos. Em 2007, o colapso desse modelo financeiro nos Estados Unidos arrastou para uma crise violenta, primeiro os sistemas bancários de vários outros países desenvolvidos, depois toda a economia mundial.

A incapacidade de lidar com os desequilíbrios internacionais, aliás estreitamente ligada à euforia financeira que conduziu à crise, tornou muito difícil a recuperação das economias desenvolvidas, agora todas empenhadas numa corrida à prudência financeira e às exportações, necessariamente votada ao fracasso global se não houver capacidade para impedir os países excedentários de continuar a acumular excedentes.

2. A SITUAÇÃO DE PORTUGAL

Como se situa Portugal em tudo isto? Dois pontos devem ser sublinhados à partida: primeiro, o sistema bancário português não esteve envolvido nos problemas que levaram à crise financeira; segundo, a economia vinha, pelo menos desde 2005, a corrigir desequilíbrios passados, reduzindo o défice orçamental e a dependência do investimento imobiliário, ao mesmo tempo que procedia a reformas estruturais que permitiram que as exportações portuguesas começassem gradualmente a ultrapassar as suas principais carências competitivas.

No respeitante à competitividade, em matéria de custos e preços, entrou-se num período sustentado de diferenciais negativos (de inflação e de custos unitários do trabalho) relativamente à área do euro. Os principais problemas de competitividade da economia portuguesa resultavam, porém, da própria estrutura produtiva, de uma cultura de gestão conservadora, de um sistema educativo inadaptado à rápida evolução tecnológica e de um quadro institucional adverso à inovação e à transferência de recursos para usos mais eficientes. Nenhum destes factores è susceptível de transformação repentina e o ajustamento necessário era dificultado, por um lado, pelo facto de nos integrarmos numa área económica ela própria em profunda mutação e que apresentava um crescimento medíocre e, por outro, pelo elevadíssimo nível de endividamento externo que o país acumulara ao longo dos anos, endividamento esse extensivo (directamente ou via sistema bancário) a todos os agentes económicos: Estado, empresas e famílias.

Não admira, pois, que a crise iniciada em 2007, colhendo-nos em plena fase de ajustamento, tenha tido um forte impacto sobre o crescimento da economia, tornando indispensável a adopção de políticas de combate à crise, aliás universalmente recomendadas a partir do momento em que se materializou o espectro de uma catástrofe global semelhante à de 1929. Da aplicação dessas medidas resultou, em Portugal, um menor decréscimo da actividade económica que o observado na maioria dos nossos parceiros, com um agravamento do défice orçamental da mesma ordem de grandeza. Em função de tais resultados não seria, pois, de esperar os mercados financeiros nos elegessem, em 2010, como um dos principais alvos da aversão ao risco que entretanto sucedera à euforia da década anterior. Foi, todavia, isso o que aconteceu, na sequência dos problemas que emergiram na Grécia no final de 2009. A parte seguinte deste texto enumera as razões de tal contágio e um conjunto de medidas necessárias à reconquista da confiança e da capacidade de desenvolvimento da economia.

3. O QUE EXPLICA AS DIFICULDADES ACTUAIS DA ECONOMIA PORTUGUESA

Existem diversas explicações para o actual cepticismo dos investidores internacionais relativamente a Portugal e importa reconhecê-los e corrigi-los, antes de demonizar os mercados financeiros ou as agências de 'rating'. Podemos agrupá-las em três tipos de factores:

Estruturais: a vulnerabilidade acumulada pela economia ao longo de décadas, que tem como expressões principais o grau de endividamento externo e a fraca competitividade da economia.

Técnicas: a "surpresa" do défice de 2009. Independentemente de o julgarmos virtuoso ou vicioso, a avaliação tardia do seu real montante sublinhou a falta de transparência das contas públicas e deficiências inaceitáveis na qualidade do acompanhamento da execução orçamental.

Políticos: a situação de crise tornou clara a inadequação do actual quadro parlamentar, quer para a adopção das medidas conjunturais necessárias, quer para consolidar e prosseguir o esforço de transformação estrutural de que depende o crescimento da economia e a sua capacidade futura de servir a dívida.

É evidente que, no actual enquadramento internacional, a redução das vulnerabilidades da economia só pode ser gradual. No passado assistimos a inversões rápidas - embora não sustentáveis - dos défices externos, graças a desvalorizações cambiais que, mais do que aumentar a competitividade da economia, tinham como resultado inverter os fluxos de saída de capitais que, com êxito garantido, especulavam com a expectativa da adopção de tal medida sempre que o défice de transacções correntes se agravava e o recurso ao financiamento externo se esgotava. Hoje em dia esse caminho está vedado e é difícil lamentar a sua falta. Por outro lado, mudanças de política capazes de atrair rapidamente grandes volumes de investimento externo, como sucedeu na Irlanda na segunda metade da década de 80, estão igualmente fora de questão: não só o investimento empresarial dos países desenvolvidos se reduziu fortemente, como se concentra nas economias emergentes, em especial da Ásia.

A Portugal só resta, portanto, prosseguir as reformas tendentes a acelerar a reestruturação do sector produtivo, a agilizar a Administração Pública, a melhorar a eficiência energética e reduzir a dependência de fontes externas de energia e a capacitar os trabalhadores e os empresários para enfrentarem um enquadramento internacional novo e particularmente árduo no caso português, tendo em conta as condições de partida. A persistência das forças políticas em ignorar tais exigências só contribui para agravar a imagem de incapacidade política do país, quer os protagonistas se dediquem a qualificá-las de ideologia neo-liberal, quer optem por jogos mediáticos de imputação de culpas ou de auto-atribuição de presciência e de exclusivos de autoridade moral.

4. QUE FAZER?

A crise da dívida soberana na Europa em 2010 veio tornar mais crítica a situação portuguesa e mais imperativa s urgente a busca de uma solução política coerente e credível para os problemas do país.

A nível externo, Portugal foi de novo atingido por um turbilhão em que, à sua vulnerabilidade intrínseca, se juntaram preconceitos ideológicos e barreiras informativas que não temos sabido desmantelar, levando a que, por simples reflexo, nos façam partilhar os problemas de governância de uns e as crises imobiliárias ou bancárias de outros. Assistimos a episódios, que seriam ridículos se não fossem graves, em que entidades supostamente responsáveis nos aconselhavam a tomar medidas que já tínhamos tomado (como a reforma das pensões) ou a combater problemas que não tínhamos (como a bolha do imobiliário ou a crise bancária).

O clima político e informativo interno deu um contributo que está longe de ser despiciendo para agravar os preconceitos externos. O afã da luta pelo poder nuns casos e, noutros, a vontade de protagonismo ou o desejo real de avançar soluções, ainda que irrealistas, insuficientemente fundamentadas ou simplesmente populistas, ajudam todos os dias a reforçar a falta de confiança na capacidade do país para resolver dificuldades que, a despeito das suas falhas, os investidores internacionais e as agências de 'rating' que os aconselham apreciam melhor que a maior parte dos comentadores nacionais.

O que devemos então fazer?

1. Reconhecer o ponto em que nos encontramos. A situação do país é extraordinariamente vulnerável, tendo de financiar no exterior uma enorme parte da divida, tanto pública como privada. Fá-lo normalmente através do recurso do Estado e dos bancos aos mercados financeiros internacionais. O re-agravamento dos défices orçamentais a partir de 2009 deixou a dívida portuguesa à mercê de avaliações que adquiriram subitamente uma enorme severidade. Mesmo que discordando de alguns dos seus fundamentos, este não é o momento para os discutir. O momento é sim de reunir esforços e, mais uma vez, mostrar que somos capazes de tomar as medidas necessárias. Quanto mais tarde o fizermos - e já perdemos muito tempo - tanto mais seremos obrigados a tornar essas medidas mais severas e, nalguns casos, mais estúpidas. Sendo absolutamente claro: Portugal não pode dar-se ao luxo de sofrer uma nova redução do 'rating', sob pena de se entregar nos braços de um FMI encarregado de aplicar receitas necessariamente mais cegas e injustas do que as pensadas por nós, por muito duras que estas tenham que ser.

2. Perceber que, nesta situação, continuar a adoptar estratégias meramente eleitorais só pode ser contraproducente. Por exemplo, a não aprovação do OE apenas serviria para "provar" aos investidores internacionais a incapacidade do pais para se gerir. Haverá tempo - e, devemos reconhecê-lo, muitos dos críticos já o tiveram - para corrigir o que se considerar serem os seus erros. Os partidos de Governo têm, nesta matéria, uma responsabilidade que não podem alienar e que ninguém compreenderá que alienem.

3. Ir além das "simples" medidas de corte de despesas/aumento de receitas. Existem nas finanças públicas portuguesas problemas intrínsecos, ao nível do processo orçamental e do acompanhamento da execução do OE, que urge corrigir. Enquanto a política orçamental não se basear num verdadeiro horizonte plurianual - muito para além do PEC - não será possível alcançar um objectivo sério de racionalização das despesas públicas. Enquanto não existir um acompanhamento completo e transparente da execução ao longo do ano, não só podem repetir-se "surpresas" semelhantes à de 2009, como os investidores internacionais não ganharão confiança nas políticas anunciadas.

4. Reconhecer que, no actual enquadramento internacional, o crescimento da economia supõe dinamizar a capacidade de transferir recursos para usos mais eficientes. Dar eficácia aos mecanismos de resolução de empresas, acabar com a segmentação do mercado do trabalho, adoptar reformas fiscais que favoreçam a produção em detrimento do consumo e o emprego em detrimento da ociosidade, criar mecanismos e uma cultura de permanente avaliação, são exemplos de áreas essenciais, não só para convencer os mercados financeiros da capacidade do pais para continuar a servir a divida, mas para melhorar, de facto, ávida e as expectativas dos portugueses.

5. Finalmente, comunicar e pôr em prática de forma convincente e coerente um programa político que incorpore soluções reais para as questões enunciadas. Soluções tardias e parciais, tomadas como resposta à pressão dos mercados e sem garantia de poderem ser postas em prática, não só não resolvem como, na actual conjuntura, agravam os problemas.

2010-10-07 07:47

Teodora Cardoso, Diário Económico

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