Sunday, April 04, 2010

RESSURREIÇÃO

Ninguém sabia como tudo tinha acontecido mas ao fim da tarde daquele Domingo de Páscoa a notícia corria à velocidade de um escândalo: a visita pascal tinha sido interrompida porque O Crucificado desaparecera sem deixar rasto.

O padre, um homem robusto de cinquenta e tantos anos, era muito estimado na paróquia pelo seu trato afável ainda que mantivesse as distâncias que o mister sagrado lhe impunha. Ninguém lhe apontava um reparo nem interpunha qualquer mas. Vivia ali há longos com uma irmã que, de tão fisicamente parecida com ele, dir-se-ia que eram gêmeos. O prior, dizia a ironia, nem parecia que era um padre. Conheciam-se nele apenas dois vícios superficiais que o aproximavam do seu humano rebanho: fumava um cigarrito ao fim do almoço e não resistia à oferta de um copito de vinho sempre que as circunstâncias não desaconselhassem. Ele era aquele de entre eles que havia sido providencialmente escolhido para a sagrada incumbência de intermediar os seus anseios entre a terra e os céus.
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A visita pascal era naquele tempo uma festa a que ninguém fechava as portas. Se as convicções ou os preconceitos de alguns homens os arredavam de beijar o Senhor que o padre levava às casas que lhe estendiam uma passadeira de louro e alecrim, recebiam-no as mulheres e os filhos, mais embevecidos com os rituais divinos. O cortejo pascal, para além do prior paramentado de branco, incluía o sacristão, de opa vermelha, que transportava o turíbulo, e meia dúzia de acólitos, de opas roxas, incumbidos de receber e transportar as côngruas traduzidas em milho, feijão seco, grão, arroz, raramente em dinheiro.
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Foi, ao que se dizia, numa dessas operações de recolha da côngrua que, sem se saber como, tinha desaparecido o crucifixo. Segundo alguns, porque o sacristão se deixara embalar pelos cálices de jeropiga e fatias de folares colocados pelos crentes nas mesas das salas da visitação, segundo outros, porque também o prior se deixara tentar mais vezes do que a prudência consentiria pelos doces e alcoois oferecidos.
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Fosse como fosse, o crucifixo estava perdido, sem crucifixo a visita ficava inviabilizada por falta do Visitante, e o prior decidiu suspendê-la para o Domingo de Pascoela alegando cansaço, voltando o cortejo de imediato para a Igreja com os sacos dos cereais recolhidos. Quando a notícia começou a constar já o prior tinha dado ordens para que fossem encerradas as portas da Igreja, uma decisão que parecia confirmar as suspeitas de sacrilégio que tinham sido levantadas com a suspensão da visita.
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Duas horas de expectativa, o povo cá fora, o cortejo lá dentro, ninguém saía nem ninguém entrava, do prior, até aí imaculado, já se contavam as mais obscenas aventuras e os mais desregrados comportamentos. Estava a excitação popular a deitar por fora, o sol acabava de se pôr, quando se abriram as portas e o povo entrou de olhos atirados para o altar-mór.
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E no altar-mór, como todos poderiam ver, voltava a estar O Ressuscitado, mas sempre Crucificado.

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