Saturday, July 18, 2009

SAGRES 2

Caro Francisco,

O trabalho não é um conceito unívoco, dizes tu aqui, e tens toda a razão.
A propósito, deixa-me que te conte uma anedota com barbas:
Dois lordes, já entradotes na idade, passaram a tarde a jogar ao gamão e, depois do chá das cinco, envolveram-se numa discussão interminável acerca da natureza do trabalho.
Defendia o anfitrião que até o amor era trabalho. Contrapunha o convidado, que não senhor, amor era prazer, logo não era trabalho.
Entrou o Jerónimo a meio da discussão para levantar a loiça, e diz-lhe o patrão:
- Jerónimo, tu, que tiveste o azar de nascer plebeu, tens entendimento, mas as tuas opiniões nada contam. De qualquer modo, gostaria que nos dissesses se, em teu entender, amor é ou não é trabalho.
Jerónimo, manteve-se calado por uns instantes a olhar os lordes, e depois respondeu: Senhor marquês, se amor fosse trabalho quem tinha de dormir com as criadas era eu!
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É só uma velha anedota mas resume o que está em causa.
O conceito de trabalho é, provavelmente, daqueles que mais evoluiram ao longo dos tempos, mas essa evolução acelerou-se com o desenvolvimento da ciência e da técnica. De tal modo que hoje todos os contornos que possam esboçar-se são necessáriamente difusos. A menos que levem os seus limites até ao limite da vida: a partir do primeiro bater do coração até ao seu último estremecimento, qualquer ser vivo está a trabalhar, mesmo quando dorme.
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O que nos importa, contudo, para a discussão do assunto que dialoguei aqui, é o conceito restrito de trabalho que envolve a produção de bens ou serviços. Neste sentido, o futebolista realiza um trabalho de produção de um serviço, o cantor outro, o trabalhador numa cadeia de enchimento de cerveja outro. Geralmente, e até estatistícamente, este conceito restrito é ainda mais restringido, reduzindo-o ao conceito de trabalho remunerado. Nesta acepção, por exemplo, o trabalho doméstico se realizado por empregados é quantificado no PIB, se realizado pelas famílias não é.
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Adoptando o conceito de trabalho no seu sentido mais restrito, é indiscutível que a produtividade reduz o número de horas de trabalho necessário para produzir os bens e serviços que consumimos. E também é verdade que o leque de produtos e serviços tem aumentado exponencialmente com a evolução exponencial da ciência e da tecnologia. A questão, tão candente, da insolvência dos sistemas de segurança social só se coloca se a evolução da redução do número de pessoas activas se processar a uma cadência mais rápida do que o crescimento da produtividade permite.
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O crescimento da produtividade, contudo, é ao mesmo tempo causa e consequência da competitividade entre os indivíduos, entre as sociedades, entre as nações. Consequência porque é a concorrência que incita à inovação e, portanto, à produtividade. Causa, porque a produtividade é um dos factores mais importantes da competitividade. A produtividade evolui, portanto, de forma muito diferenciada, e o crescimento do desemprego numa zona pode não estar, e geralmente não está, ligado a crescimentos de produtividade nessa zona mas aqueles que são observados em zonas concorrentes. Deste modo, o emprego cresce em zonas de maior produtividade e decresce em zonas de menor produtividade.
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Globalmente, contudo, o crescimento geral da produtividade implica, por definição de produtividade, a necessidade de menos recursos humanos para satisfazer o mesmo consumo per capita. Como o consumo per capita não pode crescer ilimitadamente (a não ser que a produção para desperdício continue a crescer desmedidamente, destruindo irracionalmente recursos) o trabalho reduzir-se-á até à inversão total do conceito: de penosidade paga a prazer remunerado.
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Pensa no dia em que o homem conseguir produzir energia de forma ilimitada, a custo zero, portanto. A partir desse dia, o valor, em termos pecuniários, deixará progressivamente de fazer sentido. Utopia? Não creio que haja utopias nos domínios das ciências da natureza.

2 comments:

aix said...

Estou feliz, Rui, por ter provocado umas considerações tão pertinentes quanto desafiadoras sobre o trabalho.Foi assunto que muito me interessou quando das minhas lides académicas (cartesianamente nunca cheguei a qualquer conclusão!).O episódio dos lordes é hilariante e ilustraria o típico humor inglês não fosse a intervenção do mordomo,a avaliar pelo nome e pela saída um portuguesinho esperto.Abç

Rui Fonseca said...

Caro Francisco,

Vou teclando estas coisas como quem faz palavras cruzadas. Para ver se encaixam umas nas outras.

Um abraço.