Monday, May 04, 2009

NO REINO DAS AUTO-ESTRADAS

Engenheiro M A
Meu ilustre Amigo,


Leio o seu artigo - As estradas desertas ... - publicado no Expresso deste fim-de-semana e sou tentado a escrever para discordar da perspectiva em que o meu Amigo se situa na abordagem de algumas questões derivadas do objecto principal da sua contestação. Não vou, contudo, defender a legitimidade da intervenção PR, nos termos em que o fez, nem embrenhar-me na discussão acerca da oportunidade dos grandes investimentos públicos em situação de crise aguda dupla (a global e a nossa) em que o Governo aposta e a maioria da Oposição contesta. A apreciação integral do seu texto exigiria uma divagação da minha parte que, seguramente, abusaria da sua paciência.
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Cinjo-me apenas ao período do seu texto que o editor destacou *:
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“Não devemos ignorar que a construção é um sector integrado. Os seus benefícios atingem todo o tecido económico (através da subcontratação) ”.
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Coloco entre parêntesis o seu entendimento acerca do conceito “integrado”, que o editor omitiu na citação, porque essa explicitação é importante para se perceber o alcance da afirmação no seu texto. Geralmente, integração, vertical ou horizontal, tem outro alcance, como bem sabe. Para a “integração”, por subcontratação, não conheço outro termo senão “subcontratação” mesmo, “outsourcing” para os que gostam de inglesar.
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Mas deixemos a questão dos conceitos de lado e analisemos o alcance da subcontratação como um factor supostamente relevante da importância global de um sector.
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Do ponto de vista do próprio sector, a subcontratação é, certamente, muito importante. Não fosse esse o caso e não se teria a subcontratação generalizado. A “subcontratação” transforma custos fixos em variáveis, permitindo às empresas uma maior flexibilidade na adaptação da sua actividade às condições do mercado: se há obras, subcontrata, se não há, espera por melhores dias. Como muito bem sabe, é esta a razão pela qual há empresas do ramo da construção civil que com meia dúzia de empregados podem atingir facturações que se medem em milhões de euros anuais. Nestes tempos de crise grave que defrontamos, milhares de trabalhadores da construção civil que trabalhavam no Sul de Espanha estão a regressar a Portugal.
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Dito isto, não quero dizer, longe disso, que o sector da construção não é importante. É, com certeza. Desde logo como um grande empregador, geralmente em rede de “subcontratos”. Tão importante que uma quebra sensível da actividade de construção (seja no subsector da construção de imóveis ou no das infra-estruturas) se reflecte dramaticamente na perda global de emprego.
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O que quero dizer é que a “subcontratação” não é em si uma vantagem económica global, qualquer que seja a perspectiva que se assuma, até porque ela facilita (é o seu objectivo) a redução do emprego. O que quero dizer, por outro lado, é que a importância da construção civil na economia portuguesa decorre do excesso que ela assumiu (ou a levaram a assumir) no contexto nacional. Há, perdoe-me a expressão, na economia portuguesa um síndrome de dependência da construção equivalente à dependência dos drogados. É por estar “drogada” em ”excesso construtivo” que a economia portuguesa não pode passar sem ela. Esse excesso já tem sido medido de formas diversas (peso relativo do VAB do sector na economia, habitações por famílias residentes, auto-estradas por habitante, emprego) mas é, sobretudo, ao nível do emprego que a dependência é mais flagrante.
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A construção civil é hoje um do sectores económicos com maior intensidade de utilização de mão-de-obra, se contados todos os trabalhadores empregados pela rede de “subcontratados”, não sendo esperável, ao contrário de outras actividades económicas, pela natureza das suas operações, que possa atingir a redução de efectivos observada em outros sectores, ainda que possam observar-se progressos sensíveis dos seus níveis de produtividade. Continuará, portanto, a ser um empregador importantíssimo, sobretudo num país como o nosso com um grau de desenvolvimento incipiente na última década. Mas isso não significa, do meu ponto de vista, um mérito próprio mas um demérito da economia como um todo.
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Os custos de oportunidade dos factores que têm favorecido o crescimento do sector da construção têm-se, implicitamente, reflectido no desfavorecimento de outros. Por exemplo, os recursos financeiros atraídos para a construção escapam-se, naturalmente, a outros sectores. Entre financiar uma auto-estrada que tenha a garantia de rentabilidade assegurada pelo Estado e uma indústria exportadora, obviamente sem aquela garantia, os banqueiros terão pouquíssimas razões para hesitar.
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Como qualquer aposta obsessiva tende a atingir resultados perversos, a crise que a economia espanhola defronta, neste caso mais acentuada que a nossa, e que é decorrente em grande parte de um excesso "construtivo", prova que também o sistema financeiro por vezes acredita que as árvores crescem até aos céus. E não crescem, até prova em contrário.
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A Espanha, no entanto, ao entrar na crise desfrutava de uma situação confortável das contas públicas. Portugal enfrenta a crise global a contas com uma crise interna que se traduz num endividamento externo que ameaça asfixiar o crescimento empurrando-nos para o empobrecimento durante um período largo.
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Mas com uma boa rede de auto-estradas.

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Transcrevi atrás o texto integral do artigo de E Catroga para a mesma edição do Expresso, e publicado na mesma página, Megaprojectos, com um âmbito mais alargado do que aquele que pretendi dar ao meu texto.

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