Monday, August 25, 2008

LE BIANÉ

LMSilva Marques era professor de francês em meados do século passado; desde a primeira entrada na sala de aula, nenhum aluno seu era autorizado a falar outra língua durante as suas lições. Fora da sala de aula, as conversas com os seus alunos eram sempre em francês. Evidentemente, nos primeiros tempos os alunos não falavam francês, mas tentavam expressar-se socorrendo-se dos vocábulos e regras que progressivamente iam assimilando.

Silva Marques tinha tanto de bom pedagogo como de fanático benfiquista. Vivia só, teria naquela época cerca de quarenta anos, mas nunca tinha entrado num campo de futebol, não ouvia pela rádio os relatos de futebol, não lia os jornais desportivos, sabia da sorte do seu amado clube apenas pelos comentários dos colegas quando chegava segunda-feira de manhã à sala de professores. As suas aulas às segundas-feiras eram medonhas se o Benfica tivesse perdido, excitantes se o Benfica tivesse ganho. As exigências pedagógicas de Silva Marques enxertadas na sua anormal idolatria futebolística chegavam ao ponto de chamar aos "encarnados" "Le Bienest" e substituir os bons dias da praxe por um caloroso "Vive le Bienest!" se o Benfica tivesse arrecadado dois pontos.

Quem levou longe de mais o seu esforço de progressão de conhecimentos da língua francesa foi o Pvt, alcunha herdada do pai que era guarda da polícia de viação e trânsito, uma corporação que mais tarde viria a ser extinta por mau comportamento. O Pvt, pensando que a alusão ao glorioso no caderno diário poderia melhorar-lhe a nota de fim de período, escreveu na capa, com letras garrafais a formar um Arco Íris: Vive li Biané! Não ganhou nada com a iniciativa e teve de comprar um caderno novo. Ninguém percebeu o critério. A esta distância temporal, penso que Silva Marques tinha, pelo menos, aquela tara mas não gostava que lhe chamassem tarado.

Um amigo meu dizia-me há dias que quem não tem clube não gosta de futebol, referindo-se à minha neutralidade clubística, perante o meu espanto de o ver levantar-se de uma roda de amigos de dez em dez minutos para ouvir o resultado do Benfica-Rio Ave num rádio que tinha ligado numa sala ao lado.

LMSilva Marques era, inquestionavelmente, um caso patológico de clubite aguda. Mas prova, irrefutavelmente, que pode o fanatismo clubístico ser completamente alheio ao espectáculo desportivo que o criou e sem correlação alguma com o QI do adepto.

Inversamente, pode o espectáculo desportivo agradar a quem nasceu razoavelmente insensível ao partidarismo clubístico? Porque não?

1 comment:

Luciano Machado said...

Caro Rui
Com tanto assunto importante que suscitas no teu blog que podíamos discutir foste logo picar-me com o futebol.
Tendo feito parte da roda de amigos a que te referes e sido um dos agitados saltitões ao relato do jogo em curso vou procurar responder às perguntas que deixas em aberto.
Mas primeiro um parêntesis sobre o comportamento do tal LMSilva Marques, professor de francês. Acreditas mesmo que fosse possível um homem que nunca tinha entrado num campo de futebol, não ouvia pela rádio os relatos de futebol, não lia os jornais desportivos, pudesse alimentar o seu fanatismo clubista só sabendo da sorte do seu amado clube apenas pelos comentários dos colegas quando chegava segunda-feira de manhã à sala de professores? Desculpa mas eu não acredito. Claro que isso não invalida a tua afirmação de o fanatismo clubista ser completamente alheio ao espectáculo. Eu sempre me lembro de ser benfiquista e só vi o primeiro jogo de futebol a sério quando vim para Lisboa (teria uns 17 anos), mas não dispensava o acompanhamento do relato radiofónico e a leitura de “A Bola”de 2ª feira. Hoje já vou tendo uma reacção menos afectada que nesses tempos, mas continuo, por fé clubista, a gostar de acompanhar a pari passo o desenrolar dos encontros em que participa o “glorioso”.
Quando o nosso amigo AM te dizia que quem não tem clube não gosta de futebol, eu acho que isso é de Lineu porque o gosto pelo futebol, por força do ambiente que desde sempre se criou à volta desse espectáculo, aparece sempre ligado às primeiras paixões clubistas. Mesmo quando o gosto possa também estar ligado à prática do desporto daí decorre também o afeiçoamento ao clube eleito.
Permite-me assim que ponha em dúvida a tua neutralidade clubística., o que evidentemente não implica que te considere um fanático mas dá para perceber que torces pelo Sporting, mesmo com o contratempo do Perides ao mudar-se para o Benfica de que tu tanto falas.
Reforçando a afirmação do AM: futebol é paixão e só neste ambiente ele tem beleza. Consegues imaginar duas equipas, mesmo as melhores do mundo, a jogar num estádio vazio sem as bandeiras em agitação e as claques aos gritos? Que fastio!
Claro que como em todos os comportamentos há, por vezes, alguma irracionalidade que nem os próprios conseguem explicar. Seguramente não tem a ver com o QI muito menos com a maior ou menor beleza do espectáculo. Tu percebes bem isso.

Um abraço

LM