Wednesday, December 19, 2007

A RAÍNHA DE ESPADAS




























Valery Gergiev, dirigindo a Orquestra de Kirov na Ópera "The Queen of Spades" no Kennedy Center -
Dezembro 2007

A CANUDA

Renúncia!!!!!, berrou o Pureza, nem parecia o Pureza, ao mesmo tempo que se levantava e dava um murro na mesa. Este gajo renunciou a espadas!, voltou o Pureza a berrar e a apontar o adversário à direita. Uma renúncia, ou é distracção do jogador ou batota, e, sendo batota, na sueca, segundos os códigos é falta para pena máxima.

O Pureza é um homem pacato, na casa dos quarenta, mais para cima que para baixo, cumpridor, sem vícios, o que vai sendo caso raro mesmo se falta o dinheiro. Vive sozinho, a mãe tomava conta dele enquanto viveu, os parentes próximos ou morreram ou emigraram. Alto e entroncado, fala sempre baixo e pausadamente como convém a quem trabalha com correntes eléctricas. Aquele berro do Pureza foi, portanto, uma originalidade nele.

Só aos fins-de-semana, e nem todos, porque se está bom tempo vai pescar, o Pureza vai até ao outro lado da rua beber um café e ler o jornal, incluindo os pequenos anúncios e a necrologia. De vez em quando, deixa-se ficar por ali até mais tarde, compra uma sanduíche e bebe um copo, e a meio da tarde, o mais tardar, volta para casa, descuidado. Quarentão e solteirão, que sortes tu tens ladrão!

O ano passado, véspera de Natal, o Pureza foi até ao café como de costume. Uma bica senhor Arnaldino, e pôs-se a ler o jornal, oferta da casa.

O Arnaldino aproveita a época das festas para melhorar o saldo de caixa e põe à venda tralha natalícia made in China que vende a quem tem pouco para gastar ou deixou as compras de prendas para a última hora. O Pureza olha enjoado todo aquele frenezim, a véspera de Natal, se ele mandasse, passava para Agosto que é quando está bom tempo e o Pureza vai pescar. O Natal para o Pureza, só não vê quem é torto de vistas ou não percebe nada da humanidade, é a pior época do ano. Faz frio, chove, no café é aquela trapalhada que se vê, os putos a berrar, as mães a atropelarem-se no meio da mercadoria do Arnaldino, o Arnaldino com um olho no burro e outro no cigano sem atenções para a clientela certa, como é que pode um cidadão ler o jornal descansado, beber a bica sem que um empurrão imprevisto da clientela aluada não lhe mande a bica pelos ares, ou conseguir que o Arnaldino lhe traga a sanduíche do costume?

Estava o Pureza a revoltar-se a sério por dentro quando entram no café dois rapazes amigos que costumam parar por ali, vinha com eles o Paulino. Este Paulino deu à costa naqueles sítios há uns vinte e tal anos, de mota a derrapar e a fazer fumo em gincanas admiráveis. Trabalhava na Câmara, ao fim de meia dúzia de rondas já tinha a Canuda comprometida.

A Canuda é a Agostina, Tina para familiares, amigos, e toda a gente pela frente. Por trás, era a Agostina Canuda, ou simplesmente Canuda, filha única da Canuda, neta da Canuda, bisneta da Canuda, Canuda até onde a árvore genealógica da Agostina era visível. As Canudas eram vizinhas dos Purezas, e a mãe do Pureza, sem surpresa, quando viu a Tina embarcada só não morreu de desgosto porque as coisas nem sempre acontecem assim tão depressa. Mas meteu-se na concha com o filho e entre as famílias vizinhas o muro foi rebocado para garantir maior privacidade a partir daí. Casados, Agostina e Paulino ficaram a viver com os pais da Tina. Com os Purezas passou a ser bom dia, boa tarde, cada vez em tom mais baixo, talvez por isso o Pureza falava sempre para dentro.

Quando uns anos mais tarde o Paulino saiu de casa por troca com outra e deixou a Canuda e o filho, nem a mãe da Pureza nem os pais da Canuda eram vivos. O muro entre os sobreviventes embrulhou ainda mais a solidão dos dois. O Pureza saía de madrugada e regressava já noite, a Tina vestiu luto pelos pais e manteve-o pela deserção do marido. De preto vestida, para os jogadores de sueca no café do Arnaldino, a Raínha de Espadas é a Canuda.

Olha o Pureza por cá! Bons olhos te vejam, homem! É hoje que bebes um copo com a malta ou nem na véspera do Natal quebras o galho? Com estas e outras o Pureza cedeu e bebeu. E quando o convidaram para completar a mesa da sueca não tinha argumentos nem resistência para dizer que não.

Na escolha de parceiros não lhe calhou o Paulino para par, e ainda bem, nunca tinham tido qualquer desencontro mas toda a gente sabia que o Paulino tinha apanhado a Tina ao Pureza. Baralhadas as cartas, coube a vez ao Pureza de começar a dar, trunfo espadas, o terno à vista. O Pureza tinha um bom jogo, nada menos que quase toda a família real em casa, só lhe faltava a Canuda. Para tentar uma limpa o Pureza começa por destrunfar. À terceira jogada já deviam ficar fora todas as espadas segundo contas que qualquer um, mesmo inábil, pode fazer. Mas não.

Nesta altura passa-lhe o Arnaldino ao lado e o Pureza pede-lhe um canivete para cortar a sanduíche que ficara a meio por causa da sueca.

O Pureza, corta sanduíche e mastiga um naco que lhe tapa a boca, e puxa pelo último trunfo que tinha, assistiram todos menos o Paulino que se baldou em ouros. Ou havia renúncia ou o Pureza teria bebido demais. Considerou esta hipótese e proseguiu o jogo. A limpa estava garantida, e na penúltima vasa o Paulino joga a Canuda numa puxada de paus.

Renúncia!!!, berrou o Pureza! e ao mesmo tempo tenta demonstrar porquê. Nega-lhe o Paulino as cartas e o Pureza berra de novo: Este gajo renunciou a espadas! Com a Canuda, acrescentou quando com o canivete do Arnaldino já rasgava de alto a baixo o lado esquerdo da cara do Paulino.

1 comment:

Bartolomeu said...

Caro Rui Fonseca... caro nada, que o meu amigo não tem preço, pelo menos, não lhe noto código de barras.
Sr. Rui Fonseca, trouxe-me o seu convite e devo declarar-lhe que em boa-hora. Tem aqui o meu amigo um excelente blog, com uma particularidade que aprecio bastante, está escrito em português, simples, discreto e conciso, muito bom!
E resta-me dizer-lhe que a história é excelente, retrata uma realidade, numa atmosfera sóbria. Se fosse uma fábula, poderia retirar-se dela uma moral, "é absolutamente necessário ter atenção ao timming"!
Se o nosso amigo Pureza, tivesse contabilizado correctamente esse timming, ao tal de Paulino nunca teria saído a Canuda, nem que tivesse esfarrapado duas dúzias de pneus em derrapagens no asfalto.
Como em tudo na vida... é necessário conseguir estar no local certo à hiora certa... vá-se lá saber como!?
;)))