Wednesday, July 18, 2007

MEMÓRIA DO ESQUECIMENTO

Era um Don Giovanni sem Leporello, de modo que ele próprio se encarregava da promoção da sua imagem de galador. Pegava nas conversas e levava-as, qualquer que fosse o assunto conversado, sempre para os mesmos destinos: política, futebol e mulheres. E era verdade que nem todas as histórias de alcova que contava eram inventadas, nem o número de conquistas femininas muita balela. Se auto apregoava a fama também embolsava muito proveito. Gostava do palco e das palmas. Alimentava-se da fantasia que engendrava, e esquecia, assim, penso eu, desgostos acumulados.
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- Vê ali aquela bola? Faço de conta que é a cabeça do M.A., e zás!, acerto sempre - dizia isto, e fazia um swing.
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Tinha vários inimigos de estimação. Comprometido políticamente mas pouco envolvido nas lutas partidárias, chegou a fazer parte de um governo de Mário Soares. Adversário ou opositor que lhe caísse em desgraça não escapava a tacadas intermináveis.
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- Zé G., ganhámos ou perdemos este fim-de-semana?
- Perdemos, outra vez, dr.
- Tudo normal, portanto.
- Desgraçadamente é assim, dr.
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O Zé G., era uma espécie de paquete no escritório, já com idade para ser outra coisa se não lhe faltassem habilitações. Lia os jornais desportivos, sabia tudo o que acontecia em Alvalade.
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- Despache-se homem! Não posso perder mais tempo. Tenho uma miúda à minha espera há mais de uma hora. Se já se despiu, ainda fica constipada! - dizia ele, uma vez, a um atordoado sindicalista que não passava dos considerandos.
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Era um dos muitos clichés que utilizava mas criava também muitos momentos de hilariante originalidade. Repetia-se muito, sobretudo, quando falava das suas façanhas sexuais. Mas tinha tal modo de o dizer que prendia a assistência mesmo em reprises sucessivas.
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A última vez que o vi, já estava reformado há alguns anos, entrou no restaurante, trazendo a filha, deficiente mental, pela mão. Passados uns minutos, já a conversa desembocava na política, e, em três tempos, na sua mais recente conquista feminina.
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No funeral, apareceram meia dúzia de amigos, não vi nenhuma alma feminina destroçada à volta. Perguntei ao filho de que tinha morrido o pai. Desistiu de viver , respondeu-me. Eu acho que morreu de esquecimento.

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