Tuesday, May 22, 2007

QUASE TROPICAL

(Mato Grosso do Sul, Março, 2006)
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A Zelinha, não lembra da Zelinha? a Roca? Não lembra você de outra coisa, Dona Flora. Zélia Gonzaga Patrocínio do Salvador, a Roca, afilhada de São Roque do Paraná, você não lembra, não? Tinha um nome e tantos mas não tantos quantos os pais que eram muitos ao mesmo tempo. Pelo menos era o que constava. A Dona Flora lembra-se dela, de certeza que lembra. Ela andava um ou dois anos à nossa frente, no Ginásio. Pois talvez não. Você é para aí uns quatro anos mais nova, não? Naquela idade quatro anos faziam diferença, hoje não, acima dos sessenta temos todos a mesma. A mim, agora, quando me perguntam a idade respondo, aposentada. Idade a partir dos sessenta é matéria confidencial. E depois, a Dona Flora, naquela altura, ainda não morava no bairro, pois não? Eu acho que não, é natural que não se recorde dela, ela era loura, assim louro claro, muito claro mesmo, e não era oxigenada, não, era mesmo loura natural, de cabelo caído até aos ombros, magra, alta, e usava saltos altos, imagine, e de olhos azuis, ninguém sabia de onde tinha vindo a encomenda. Vivia com a mãe e uma irmã, a Dorinha, mas a Dorinha, se era irmã da Zelinha, tinha vindo de outro lado. A Zelinha dava nas vistas, claro que dava, não havia cão nem gato que não desse por ela, que não quisesse sair com a Zelinha, mas com quem ela perdeu mais tempo foi com o Lelo. O Lelo andava com todas, Minha Nossa. Comigo nunca andou, não senhora. Em boa verdade, é que todas queriam sair com o Lelo, o Lelo era um pedaço, você lembra-se do Lelo não lembra, quem é que não lembra. Ainda chegou a constar que o Lelo ia casar com a Zelinha, mas depois, à última hora, o Lelo deu o fora, nunca se soube porquê, ela ficou capaz de morrer mas acabou por casar com o Felício, que não era da turma, ela tinha de casar com alguém, não é verdade, ele era uns muitos anos mais velho do que ela e nem era o sapato que lhe servia, mas a Zelinha estava a ver o tempo a passar, passou-lhe o Felício por perto, agarrou-se ao Felício, acontece tantas vezes, não é, quem é que se casa por paixão hoje em dia, poucos casam por paixão. Eu casei por paixão, Dona Flora, eu casei. Foi sol de pouca dura mas casei por paixão. Eles casaram e zarparam daqui para Rio, o Felício tinha lá um tio com banca de secos e molhados, nunca mais deram sinal de vida. Quem chegou a andar com a Dorinha foi o meu Rogério, ao Rogério tocavam sempre as amigas das amigas do Lelo, eu fui a excepção da regra, casei com ele, já lá vão quase quarenta anos, meu Deus como o tempo passa e nós a dizermos sempre o mesmo, mas, então, há tempos, há coisa de dois meses, a Zelinha deu à costa, encontrei-a no mercado mas acho que ela só lá estava para matar saudades, não a vi comprar nada, quando a vi não a reconheci. Foi pela fala que eu suspeitei, ela continua a ter aquela vózinha de pãozinho sem sal: o senhor pode dizer-me por favor onde posso encontrar não sei-o-quê? Foi pela voz que eu disse de mim para mim, Luísa, esta múmia ambulante só pode ser a reincarnação, em muito mau estado de conservação, da Zelinha que eu conheci. E era mesmo. A princípio, quando me dei a conhecer, ela nem se lembrava de mim, eu acho que ela já não se lembrava de quase nada à volta, parecia mais um fantasma em visita turística ao futuro. Depois desemburrou, disse-me que o Felício já tinha morrido, ela ainda tinha continuado com o negócio por algum tempo mas depois fartou-se e passou-o, agora goza dos rendimentos que não devem ser muito chorudos pelo que deu para ver. Tive pena dela, a verdade é que vendo-a assim, quase de um dia para o outro, tão cheia de pregas e de reboco, a bem dizer ela estava mais reboco que outra coisa, tive pena dela, a mim parecia-me que a tinha visto no dia anterior com aquele sorriso de branca de neve e afinal já passaram quarenta anos, tive pena dela e convidei-a a ir lá a casa, e ela aceitou, ia caindo para o lado mas aceitou. Quando chegámos a casa, o Rogério veio abrir a porta, o Rogério agora também está aposentado, não sei se já lhe tinha dito, então como continua a não saber fazer nada portas adentro está sempre à espreita da oportunidade de abrir a porta, mas não é para se pôr portas afora, antes fosse, escusava de me ralar tanto, tem alturas em que abre a porta vezes seguidas porque acha que alguém bateu. É pancada que ele já tem lá dentro, de certeza, e ele também não reconheceu a Zelinha, nem pela voz a reconheceu. Mas também não admira, há muitos anos que ele vem perdendo o ouvido, deve ser por isso que tem aquele tique de se levantar e ir à porta. Agora quando lhe disse quem lhe tinha entrado em casa, o homem virou-se completamente do direito, estiveram a tarde inteira a recordar a história que tinha acabado há quarenta anos, quem os ouvisse, como eu os ouvi, haveria de pensar que dali para frente tinham sido só sacos de água quente. Quando ambos se calaram, de repente, é que eu entendi meter o dedo na conversa e perguntei à Zelinha se ela sabia que era feito do Lelo, afinal eles tinham ficado noivos, ela tinha casado com o Felício, e depois ninguém mais soubera dele. E não é que a Zelinha sabia tudo do Lelo, Dona Flora? Tudo, tudo, tudo. Inclusive, disse que estava agora a viver com ele, não estavam casados, dizia ela, para não perder o direito a uma pensão do falecido marido, também não percebi que diacho de pensão era a dela se ele era estabelecido, mas enfim, cada qual conta a história que lhe convém, e eu agora perdi o fio à meada, mas já sei, estava a dizer que ela então disse que agora vivia com o Lelo, porque, imagine, tinha tido pena dele, que o coitado também tinha ficado viúvo, que tinha três filhos mas não sabia deles, porque eles nunca mais tinham sabido dele, e a Zelinha e o Felício não tinham tido filhos, ela não quisera, disse ela, o Lelo estava um frangalho, velho, doente, arruinado, a viver de uma pensão de miséria e de uns trabalhos de ocasião. Ela cansara de ver tanta moléstia à volta, tinha dado à costa porque, você sabe Luísa, sempre fui muito afeiçoada a isto, há tantos anos que aqui não vinha, as saudades eram muitas, e depois ela, se não viesse apanhar um pouco de ar fresco, se calhar ainda se apagava antes do Lelo. O meu Rogério, que tinha estado que parecia outro toda a tarde com a chegada daquela visita fantasma ao passado, virou deprimido quando ouviu aquele rol de desgraças, o pobre do Rogério ficou mesmo enfiado, enfiado mewsmo a sério, ao saber da sorte do Lelo, eles tinham sido muito chegados, sabe Dona Flora, tinham vivido os melhores anos juntos no forró, o Lelo sempre fora um bacano, o Rogério não esquecia e até tinha perdoado há muito tempo ao amigo a falta de notícias. Quando a Zelinha acabou o relatório sobre a ruína do Lelo, o Rogério disse que estava com enxaqueca, você sabe que ele volta e meia se queixa de enxaqueca, pediu desculpa e foi deitar-se, e a Zelinha depois despediu-se, nem disse onde ia, também não lhe perguntei, fiquei tão preocupada com o Rogério como o Rogério com o Lelo. No outro dia, logo no outro dia de manhã, diz-me o Rogério que tinha estado a pensar toda a noite em viajarmos até Búzios. Fiquei varada, porque carga dos diabos até Búzios assim de emergência, Rogério, tantas vezes tínhamos pensado sair daqui, reformados os dois, temos tanto tempo que nem sabemos quanto temos, mas faltou-nos sempre o principal, a Flora sabe como é, as pensões são curtas e cada vez temos mais dores no corpo, vai para a farmácia o que dava para ir a Búzios e voltar pelo menos uma vez por ano, mas o Rogério nem quis fazer contas ao passeio, queria ir a Búzios, tinha de ir a Búzios, parecia pagamento de promessa, tanto insisti que lá se descoseu que íamos a Búzios para matar dois coelho de uma cajadada, ia-se de passeio e o Rogério visitava o amigo que já não via há quarenta anos, amigo do peito, agora velho, doente e arruinado, uma lástima, enfim. Flora, sempre pensei que os homens são assim, mais amigos do seu amigo que nós as mulheres, as mulheres só não se liquidam umas ás outras porque os homens se põem no meio, o meu Rogério, então, ficou mais morto com as notícias do amigo do que, certamente, o amigo, naquela hora. Mas aonde é que eu ia? Pois, o Rogério teimou, teimou, teimou, e eu perguntei-lhe onde é que ele ia descobrir o Rogério, em quarenta anos o amigo Rogério podia ter dado a volta ao mundo e ter ficado lá pelos confins, e ele esquecera de perguntar à Zelinha onde tinha ela pescado o peixe retardado. Pelos vistos o Rogério tinha pensado toda a noite do assunto mas não tinha pensado no paradeiro do amigo, de modo que deu um salto da cadeira, começou a farejar a casa toda e perguntou pela Zelinha, a Zelinha foi embora Rogério, deu-te a enxaqueca e ela foi-se, para onde, não disse nem eu lhe perguntei. Ia-lhe dando uma coisa. Começou por embirrar comigo, eu devia ter oferecido dormida a ela, e jantar, e não sei que mais, o homem tinha-se virado do avesso outra vez, que é o lado que ele usa mais agora, depois que se aposentou, nem parece o mesmo, mas ficou trinta vezes pior com o desaparecimento súbito do fantasma da Zelinha, e, de repente, saiu de casa em pijama e chinelos. Deve ter dado uma volta por perto porque passada meia hora, se tanto, entrou em casa e pôs-se a vasculhar, outra vez, nos papeis velhos. E não que é que por milagre, que só pode ser de Nosso Senhor, o homem não encontrou o telefone do amigo, que já não era aquele, isso já nem seria milagre mas exagero que só acontece em novela, mas conseguiu saber a morada naquele tempo e, a partir daquela tanto procurou, tanto procurou, que chegou ao telefone de um sítio onde o Lelo, pelos vistos, trabalha às vezes. Então ficou mais descansado e, ao fim de oito dias, não menos, que durou o trabalho do detective, voltou a falar. Durante uma semana nem pio, só conversa telefónica, ainda nem sei quanto é a conta. E fomos a Búzios. Fomos a Búzios, nunca pensei que o calhambeque aguentasse, aguentou que nem um herói, o milagre deve ter sido encomendado de serviço completo, o calhambeque anda sempre asmático, fazia muito tempo que não saía do mesmo sítio, já tinha crescido erva por baixo, mas aguentou sem qualquer ameaço, só não acredita em milagres quem não quer, eu acredito, às vezes acredito, e então passámos, no caminho, a visitar o Lelo, eu acho mesmo que o Rogério nem queria ir a Búzios, tanto assim que depois de estar com o amigo tomou o caminho de volta, quando dei por ela já estávamos a caminho de casa sem ter ido a Búzios, mas fomos, tivemos que dar mais meia volta mas lá fomos. Fomos e até gostei. Gostei, sim senhora, Dona Flora. Não sei ainda se temos de passar o resto da vida a feijão e arroz mas gostei. Agora o melhor da história, Dona Flora, não foi a ida a Búzios, o melhor da história mesmo não foi no fim mas foi a meio. Já lhe disse que o Rogério tinha passado uma semana inteirinha à descoberta do amigo perdido, telefonou para tudo quanto é sítio, até que o descobriu e lá fomos. Mas não chegou a falar com ele, queria fazer surpresa, eu disse-lhe que não parecia bem, o Lelo até podia morrer, de repente, de contente, mas o Rogério entendeu-me em sentido figurado e lá fomos de surpresa. Pelo caminho, que nunca mais acabava, o Rogério foi pensando em tudo o que poderia ter acontecido de mau ao amigo Lelo, pensava de alto, claro, para eu o animar com o contrário, não houve nada que ele não tivesse engendrado de cabeça, e eu a pôr-lhe gelo na testa, que o Lelo devia estar a morrer, qual a morrer qual quê, vais ver que ela está pior que ele, respondia-lhe eu, que a Zelinha não tinha ido tão longe mas ele compreendia que ela não o quisesse magoar, que se calhar quando chegássemos ele até já tivesse morrido, que, pior ainda, talvez chegássemos no dia do funeral, o Rogério tem mais medo de funeral que de morrer, ele, funeral, só irá ao dele se não arranjar desculpa, e imagina Dona Flora, ás tantas diz-me ele que, com a emoção da surpresa, talvez o Lelo lhe morresse nos braços, e fez uma cara angustiada, parecia que a morte do Lelo estava ali mesmo a acontecer. Aí, Dona Flora, não consegui aguentar com a cena, deu-me uma vontade de riso, e dei uma gargalhada e depois não conseguia parar, não conseguia parar mesmo, uma coisa aflitiva, nunca vista. E o Rogério, moita, parecia que tinha sido soprado, pôs-se vermelho, vermelho mesmo, à moda antiga, mas eu não conseguia deixar de rir, Dona Flora, é que não conseguia mesmo. Não sei que me deu, nervoso talvez, o pior é que Dona Flora olhava para ele e parecia-me um tomate, um tomate mesmo, tomate grande e maduro, eu nunca tinha visto uma coisa assim e, de repente, caí em mim e disse-lhe, Rogério pára, preciso de vomitar. E ele parou. Estivemos ali um bocado, sem dizer nada um ao outro, acabámos por nos recompor e lá fomos. Mas não é que, de vez em quando, me dava uma vontade desgraçada de rir, Dona Flora, uma coisa sem explicação, bastava ver a cena e, fiz um esforço danado para não voltar ao mesmo, fiquei com uma dor aqui, Dona Flora, que ainda não me passou. Mas o Rogério deixou de falar no assunto. De vez em quando deixava ir o calhambeque abaixo, eu acho que ele a páginas tantas fazia os possíveis para arruinar o calhambeque e arranjar uma boa desculpa para voltarmos a casa de trem. Eu acho que ele tinha ficado apavorado com a cena, e se eu lhe tivesse dito, Rogério voltamos para trás, não há condições psicológicas para ir mais adiante, ele tinha voltado de bom grado, mesmo que chateado por dar parte de fraco. Eu acho. Mas o calhambeque não ajudou mesmo nada, Dona Flora, ele metia-o abaixo e eu acho que o estupor vinha a cima por ele próprio, aquilo não era o calhambeque, era um sempre-em-pé, olhe dona Flora coisa mais estranha, se não foi por milagre não tem explicação. E lá chegámos e fomos direitinhos ter com o Lelo, que onde ele mora agora é tudo em ponto pequeno. E agora, sente-se, Dona Flora, sente-se para ouvir o resto e não cair ao chão.Quando chegámos em frente da morada, já passava das duas da tarde, eu estava já com vontade de comer este mundo e outro, tinha tomado o café da manhã, só café, mas o Rogério tinha teimado que não havia almoço sem encontrar o amigo, talvez que ele até convidasse para almoçar, e eu, que podia fazer, Dona Flora, aceitei. Estava um calor dos diabos. O Rogério parou o calhambeque em frente da casa, que afinal era uma quitanda de venda de tabaco, jornais e revistas, e eu sei lá que mais, parecia a casa do Salamim, cabe lá tudo se for sem mim, e eu saltei do carro para me pôr à sombra. O Rogério atravessou a rua e foi lá dentro. Não estava ninguém. Chamou, veio cá fora, voltou para dentro, e nada. Aí eu decidi perguntar a um cavalheiro que se aproximou, por acaso o senhor conhece o senhor Lelo, o homem olhou para mim meio desconfiado e disse: o senhor Lelo sou eu minha senhora, em que posso ser útil. Nem tive tempo de responder porque, entretanto, o Rogério atravessou a rua a dizer que não estava ninguém em casa, e é quando olha para o Lelo, Lelo, é você!, o outro olha para ele desconfiado, a olhar de lado como as galinhas, diz-lhe o Rogério a querer dar-lhe um abraço, sou o Rogério, lembra?, e o Lelo se não lembrou fez que lembrou, mas não se lembrou, viu-se pelo jeito, e abraçaram-se, não se viam há quarenta anos, é obra. Digo-lhe, Dona Flora, não estava na mesma porque quarenta anos até no aço deixam mossa, mas o Lelo estava quase como novo. Não casou nunca, não tem filhos, não é rico mas não está pobre, doença, não sofre, disse que vive num apartamento com um amigo para partilhar o aluguer, não há nenhum mal nisso, não é? Costuma almoçar e jantar por ali, e fomos almoçar os três, o Lelo levanta-se cedo, almoça cedo, aquela hora jantou e nós almoçámos. Durou até às tantas, desbobinaram tudo, ou quase, que eu acho que por estar presente, coisas houve que ficaram nas entrelinhas, e prometeram voltar a encontrar-se. Já estava tudo pronto para as despedidas, e eu não me contive e perguntei-lhe se tinha notícias da Zelinha, afinal tinham sido bem amigos. Não, respondeu ele, nunca mais soube dela, não.Já no calhambeque, o Rogério, sabe-se lá porquê, virou-se outra vez do avesso. Não percebi porquê, mas nem perguntei, não senhor. Aguenta, disse para comigo, aguenta que ele acabará por dar notícias. E deu. Já estávamos quase a chegar ao sítio onde pernoitámos, quando ele me diz: Você viu como o cara está novo em folha? E eu respondi, melhor que você, Rogério!Pois, Dona Flora, tem andado do avesso desde aí. Nem os Búzios lhe deram a volta. Já viu, Dona Flora, como as pessoas são?

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