Friday, April 06, 2007

O CREPÚSCULO DO DÓLAR

In Jornal de Negócios, de hoje:

Euro toca máximos de dois anos face ao dólar: 1,3441.
O euro valorizava, tocando máximos de dois anos face ao dólar, uma vez que os sinais de uma aceleração do crescimento económico na Europa intensificaram a especulação de que o Banco Central Europeu vai voltar a subir os juros.


O estatuto que o dólar usufrui, enquanto moeda de referência, confere inquestionáveis vantagens à economia norte-americana. A popularidade do dólar tem conduzido para os EUA recursos enormes. É essa transferência de recursos, que induz uma enorme capacidade de influenciar os mercados financeiros, que, em grande parte, tem permitido aos norte-americanos usufruirem de um nível de vida que de outro modo não lhes seria possível. Este estatuto quase exclusivo do dólar, contudo, pode ter os seus dias contados. Até agora, quanto mais gente confiava no dólar e aumentava a sua posse mais aumentava a riqueza transferida para os EUA: a impressão de uma nota tem um custo ínfimo relativamente ao seu valor facial. Mesmo no caso da nota de valor mais baixo (um dólar) a diferença é quase total. Tem, portanto, grande relevância o facto de um motorista de táxi em São Paulo aceitar dólares ou preferir outra moeda, ou um "dealer" de cocaína em Medellín preferir dólares em vez de pesos.
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Há cerca de 750 biliões de dolares em notas e moedas em circulação, e grande parte deste montante circula fora dos EUA. Mesmo nos dias de hoje, quando o papel-moeda perde cada vez mais importância relativa a favor dos meios de pagamento electrónicos, o crime é ainda um "cash business", assim como todas as actividades ilegais que não podem dispensar o anonimato.
A maior parte das notas de 100 dólares (as de valor mais elevado em circulação) são o lubrificante necessário às rodas dos negócios criminosos.
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A União Europeia deseja muito claramente uma parte deste negócio e essa é a razão pela qual emitiu notas de 500 euros (que valem hoje cerca de 660 dólares), querendo com essa emissão assegurar uma vantagem competitiva no negócio. Porque a pergunta que ocorre é esta: Que transacções legais o Banco Central Europeu pensa poderem requerer notas de um valor tão elevado? Mesmo em Frankfurt uma corrida de táxi dificilmente atingirá aquele valor.
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Mas as vantagens da emissão de dólares são comparativamente reduzidas com as que decorrem do estatuto do dólar enquanto moeda de referência nas transacções dos mercados financeiros a nível global. Vantagens que vão dos custos de câmbio, e dos riscos de flutuação do valor das outras moedas relativamente ao dólar quando as transacções são denominadas nesta moeda, às aplicações em activos norte-americanos.
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O déficit comercial dos EUA é, actualmente, de cerca de 6% do produto nacional bruto, e continua a crescer. Este déficit tem de ser financiado por empréstimos. Esta situação de endividamento externo excessivo esteve na origem do colapso das moedas de países da América Latina na década de 80 e da Ásia no final da década de 90. A grande vantagem dos EUA, neste caso, reside no facto do seu endividamento externo estar titulado em dólares: o colapso da sua moeda não criará as situações de falência do sistema que ocorreram noutros países endividados em dólares quando as suas moedas se afundaram.
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Até agora o endividamento líquido dos EUA tem crescido de forma muito moderada relativamente ao produto nacional bruto. Uma das razões por que isto acontece reside no facto de a América continuar a pagar taxas de juro relativamente baixas nos empréstimos externos que contrai, e que são, na sua maior parte, tomados sob a forma de obrigações do tesouro dos Estados Unidos; por outro lado, os EUA recebem taxas elevadas dos investimentos norte-americanos feitos no estrangeiro. Acresce ainda que o sensível declínio do dólar tem majorado este efeito: aumentando o valor dos activos norte-americanos no estrangeiro (que passaram a valer mais dólares), enquanto o valor das dívidas denominadas em dólares se mantém. Na realidade os EUA descobriram um meio de contrair empréstimos sem aumentar as suas dívidas. Esta alquimia deve-se, naturalmente, em grande parte ao estatuto do dólar.
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Uma questão se coloca então: Quem são os génios que se colocam de forma tão confiante do lado perdedor?Quem é que empresta centenas de biliões de dólares aos EUA e recebe pouco menos que nada em troca? Nos últimos anos os bancos centrais asiáticos, e sobretudo o Banco Central da China, têm suportado as perdas nos empréstimos que fazem crescer a economia norte-americana. Lá terão as suas razões, evidentemente. A enorme acumulação que a China tem feito de divisas norte-americanas tem tido como objectivo sustentar a um nível deprimido a sua própria moeda e, com isso, ganhar vantagans competitivas para as suas exportações e para o emprego. Mas esta situação não é imperdurável. Há sinais recentes de mudança desta política, implicando alteração da composição das suas reservas e uma maior flexibilidade das taxas de câmbio.
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Mas as alterações nunca serão bruscas: Se o Banco da China, de um dia para o outro, lançasse nos mercados financeiros grande parte dos dólares que detem, a América não se tornaria insolvente mas a inflação atingiria valores que obrigariam a subida das taxas de juro que tornariam difícil a vida a muitas famílias norte-americanas sobre endividadas.
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Não há dúvida que os EUA precisam que a China coopere na gestão desta situação. Como é que a China se comportará, é difícil prever. Afinal os EUA, ao explorarem de forma excessiva o estatuto do dólar transferiram para a China um activo geopolítico decisivo que ela não vai deixar de aproveitar. Mas os EUA poderão ganhar, no fim de contas, com a emergência de outras moedas de referência, e nomedamente o euro, perdendo parte significativa do estatuto do dólar mas evitando os riscos que esse mesmo estatuto implica.
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(adaptação de "When the Buck Stops" de Clive Crook, in The Atlantic)

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