Saturday, January 27, 2007

O CASO DA ESMERALDA PERDIDA

Caro L.

Também a mim me repugna a forma como alguma parte da comunicação social explora muitos dos pequenos e grandes dramas com ingredientes susceptíveis de excitar a opinião pública. A questão da queda da ponte de Entre-os-Rios foi, a meu ver, o exemplo mais esticado dessa exploração torpe.

Se volto ao caso da Esmeralda não é para defender esta ou aquela parte mas esclarecer melhor o meu ponto de vista quanto à questão que coloquei: A quem compete o ónus da prova?

O caso Esmeralda oferece um leque vasto de perspectivas de análise, algumas das quais não são susceptíveis de grande disparidade de opiniões mas que, apesar do consenso, não devem ser descartadas.
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A principal verdade incontestável é a lentidão da Justiça (só a confirmação oficial da paternidade tardou nove meses e meio)
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Muitos dos incidentes observados neste processo tiveram origem ou foram agravados pelo relaxamento dos institutos públicos intervenientes. Na reacção da opinião pública subjaz não apenas a excitação provocada pelos media mas o acumular de muitas situações de desconfiança relativamente aos Tribunais que temos. O acatamento das decisões dos Tribunais é fundamental para o funcionamento de um estado democrático mas a inimputabilidade do sistema judicial, a ausência de qualquer escrutínio dos actos dos seus agentes provocou, também inquestionavelmente, um desprestígio da Justiça que é imperioso curar.

Vamos então à questão, do ónus da prova.

A propósito desta questão, recordo-me de Mariana e Madalena, duas mulheres das fragas de Miguel Torga.

“- Olha lá, os pais dos pequenos não tomam conta deles?
Madalena sorriu, cheia de uma inocência que a outra não entendia. E respondeu, na sua pureza:
- Saiba a menina que não têm pai…São só meus.”
Mariana/Novos Contos da Montanha

“ Abriu de todo os olhos turvos. Entre as pernas, numa poça de sangue, estava caído e morto o filho. Carne sem vida, vermelha e suja. O segredo dela e de Deus.” - Madalena/Bichos
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Lamentavelmente os casos de sonegação da paternidade não pertencem ao Portugal Antigo porque se mantêm, se é que não estão em crescendo, no mundo de hoje, com o inevitável incremento de filhos de pais incógnitos ou de abortos realizados em condições miseráveis.

E recordo-me também dos tempos em que, quando tinha catorze anos, fazia registos de nascimento e, quando tinha dezasseis, me deram as sentenças manuscritas pelo escrivão de direito para dactilografar para o livro de querelas que, na sua maior parte, se referiam a processos de casamento ou de perfilhação compulsivos. Fui, deste modo, testemunha imberbe e leitor de testemunhos de muitos casos que só não são em tudo idênticos ao da Esmeralda porque naqueles tempos a adopção oficial de crianças era desconhecida e o teste ADN levaria ainda quarenta e muitos anos a chegar.

Muitos anos a chegar levaria também a igualdade de direitos da mulher. Mas ainda não chegaram todos.

A e B tiveram, pelo menos, uma relação sexual e dessa relação gerou-se uma criança: a Esmeralda. Segundo um memorando do Conselho Superior da Magistratura, B foi … informado da gravidez da A… quando esta se encontrava no final da gestação”
/1169648452memorandosequestro.doc
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Na ausência de B., que duvida da paternidade, A. regista a filha com pai incógnito e três meses depois entrega-a a um casal por falta de meios para a sustentar.
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Cinco meses após o nascimento da Esmeralda, B. é ouvido no âmbito do processo de averiguação oficiosa da paternidade. Os resultados chegam sete meses depois do processo de o processo oficioso de averiguação de paternidade ter sido iniciado e a rectificação do termo de perfilhação ocorreu quando a Esmeralda já tinha 15 meses, 12 dos quais à guarda do casal a quem a mãe a entregara.

De modo que a procura de vilões para esta história tem, do meu ponto de vista, corrido nas pistas erradas. Independentemente dos juízos de valor que possamos formular acerca das atitudes de A, B e do casal, não podemos deixar, se queremos ser lúcidos, de apontar o dedo ao principal vilão, se é que há outros: O Estado de Direito, que todos queremos bem vivo mas que está ferido de doença grave.

Pois se o Estado entende (e bem) promover o processo de averiguação oficiosa de paternidade porque não o faz da forma célere que as tecnologias actuais consentem e em reacção a um acto de registo em que um dos progenitores, sendo não casados, não comparece no acto?

Um teste de ADN demora, segundo as notícias que li, uma semana. Três meses teriam sido mais que suficientes para levar a cabo o processo de perfilhação. Três meses em que a Esmeralda foi só da mãe dela.

Tivesse essa averiguação ocorrido em tempo razoável e o rumo da história teria sido completamente diferente: Teria B. reclamado a tutela da criança? Só com o consentimento de A. O mais provável é que B. tivesse sido obrigado a pagar pensão de alimentos e A. tivesse mantido a Esmeralda consigo.

O mais provável é que a B. fosse dado a faculdade de estar com a Esmeralda com a periodicidade habitual nestes casos.

Como nada disto aconteceu, por culpa do Estado de Direito que queremos prestigiado, exigia-se que esse Estado de Direito tivesse conseguido repor a posteriori a situação que os seus actos e relaxes encaminharam por vias tortuosas.

3 comments:

Ana said...

Subscrevo tudo o que disse.
Mas, agora pergunto:
Será que ainda haverá a sensata humildade de corrigir o que de mal foi feito, logo de início, revogar decisões judiciais injustas, recomeçar de novo e, pela primeira vez, ao contrário do que foi feito em 2004, assegurar o legítimo interesse da criança, que é manter os seus vínculos afectivos e a sua estabilidade emocional, ficando com quem ama e por quem se sente amada, dispensando toda a equipe de psiquiatras e psicólogos que, de outra forma terá de ser mobilizada?
Que estará ao alcance de um simples cidadão fazer para que se reponha a justiça e uma inocente criança não tenha que sofrer de forma tão cruel, pois, mesmo de forma faseada, é transformar uma menina feliz, numa criança traumatizada para o resto da vida.
Cumprimentos.

Ana Matos

Ana said...

Subscrevo tudo o que disse.
Mas, agora pergunto:
Será que ainda haverá a sensata humildade de corrigir o que de mal foi feito, logo de início, revogar decisões judiciais injustas, recomeçar de novo e, pela primeira vez, ao contrário do que foi feito em 2004, assegurar o legítimo interesse da criança, que é manter os seus vínculos afectivos e a sua estabilidade emocional, ficando com quem ama e por quem se sente amada, dispensando toda a equipe de psiquiatras e psicólogos que, de outra forma terá de ser mobilizada?
Que estará ao alcance de um simples cidadão fazer para que se reponha a justiça e uma inocente criança não tenha que sofrer de forma tão cruel, pois, mesmo de forma faseada, é transformar uma menina feliz, numa criança traumatizada para o resto da vida.
Cumprimentos.

Ana Matos

Ana said...

Gostei muito do seu artigo, e subscrevo tudo o que disse.
Esperemos, para bem de todos, mas sobretudo de Esmeralda, que a justiça seja reposta e volte a ser discutido o direito paternal, mas desta vez, com o cuidado de dar prioridade ao legítimo interesse da criança, a ser amada, a manter seus vínculos afectivos, tão determinantes para o futuro, enfim, que tenham em conta a sua felicidade e estabilidade emocional, em lugar de remediar os danos e os traumas com psiquiatras. O pai biológico poderia ter direito a visitas e, um dia quando crescesse, Esmeralda decidiria com quem quereria viver. Esta é, também, a opinião da minha filha de 6 anos, ao aperceber-se da notícia na TV: Que horror! Vão tirar a menina aqueles senhores com quem está habituada, para entregar ao pai, que não conhece?! Coitadinha! Deus queira que eles não a entreguem!
Ana Matos