Sunday, December 11, 2005

A TRAGÉDIA DE SE CHAMAR DOUTOR

Há dias, toca o telemóvel e…

- Senhor Engenheiro?
-?
- Fala Fulano, queria …
- Vou enviar hoje mesmo.
- Senhor Engenheiro, já agora, podia dar-me uma informação: tenho uns eucaliptos que plantei há um ano. Acha que está na altura de os adubar?
- Lamento Senhor Fulano, mas não é a minha especialidade.
- Não é?!! Mas então que especialidade é a do senhor engenheiro?
- Lamento desiludi-lo de novo, mas não sou engenheiro…
- Não é engenheiro? Mas então o que é que o senhor engenheiro é?

Não sei porquê, mas volta e meia tratam-me por engenheiro. Acontece o mesmo, aliás, com muito boa gente. É pecha nacional.

Um dia estava A. Celeste com o Ministro V. O. e o Ministro desata a tratar A. Celeste por engenheiro, senhor engenheiro para cá, senhor engenheiro para lá, tão insistentemente que A. Celeste se sentiu na obrigação de interromper o Ministro e esclarecer que, lamentava, mas não era engenheiro.
- Não é engenheiro?!!, interrogou o Ministro com o mesmo espanto com que interrogaria um faltoso. Mas então o que é?
- Senhor Ministro não sou engenheiro mas o que eu gostava mesmo era ser Conde, terá respondido A. Celeste e assim começado um das suas histórias intermináveis.

Em situações idênticas vem-me sempre à lembrança a saída do Celeste.
Menos que Conde, hoje em dia, são trocos.


Vem isto a despropósito de dois comentários, subtis, publicados no Público:

… Alegre fez o incrível erro de esquecer que lhe cabia então falar para todos e não para os entrevistadores. E diga-se que é ridículo que aceite ser tratado por “dr. Manuel Alegre” (AMS) – 6/12/2005

…Já agora, falando em jornalistas, alguém consegue explicar por que razão Cavaco é “professor” e Louçã é “doutor”? Já agora também, desde quando é que Manuel Alegre é “doutor”? (SJA) - 9/12/2005

A prevalência da forma sobre a substância é desde há séculos uma tara nossa. A ascensão da burguesia incorporou os penachos da fidalguia arruinada do regime antigo. Os títulos valiam por si ainda que substancialmente muitas vezes não valessem nada. Em terra de analfabetos quem era doutor era rei.

A interiorização desta atitude foi tão longe que, em Portugal hoje, enrolado num mundo altamente competitivo porque cada vez, irreversivelmente, mais globalizado, ainda se continua, geralmente, a supor que o mais importante não é saber fazer mas ter canudo e chamar-se “doutor”.

Nestas condições, não admira que estando o País recheado de “doutores” muita gente dessa não saiba que fazer ou acha que o que há para fazer não é para ela fazer, tal como os fidalgotes antigos a quem o título ridículo impedia a produção de qualquer trabalho manual e a incompetência a realização de qualquer outro.

O Manuel Alegre não é doutor, parece poder depreender-se das notas biográficas que constam do seu site na Internet.

BIOGRAFIA DE MANUEL ALEGRE Manuel Alegre de Melo Duarte nasceu a 12 de Maio de 1936 em Águeda. Estudou Direito na Universidade de Coimbra, onde foi um activo dirigente estudantil. Apoiou a candidatura do General Humberto Delgado. Foi fundador do CITAC – Centro de Iniciação Teatral da Academia de Coimbra, membro do TEUC – Teatro de Estudantes da Universidade de Coimbra, campeão nacional de natação e atleta internacional da Associação Académica de Coimbra. Dirigiu o jornal A Briosa, foi redactor da revista Vértice e colaborador de Via Latina.

Mas o que é um doutor? Um licenciado?

É óbvio que não.

Doutor é um título atribuível apenas aqueles que prestam provas para obtenção desse grau académico e são aprovados. Todos os outros serão senhores, se forem, porque os verdadeiros senhores também vão escasseando.

Mesmo a designação de doutor atribuível aos médicos é, na tradição generalizada em muitos países, correlata com a profissão de médico e não como título.


Noventa e muitos por cento dos “doutores” deste País não o são de facto.

Se houvesse vergonha e decência os títulos deveriam desaparecer. Construir-se-ia, então, uma sociedade assente em alicerces sólidos, de competência, e não balofos de presunção.

Quanto a Manuel Alegre o “doutor” fica-lhe francamente mal.

1 comment:

Manolo Heredia said...

Agora que se podem comprar licenciaturas na Net, doutores e engenheiros deviam passar a ser simplesmente "senhores", como em França.